travessa barras, 73
Eu pensei em um milhão de formas de escrever isso. Eu sei que meu cérebro faz isso pra me proteger: dissociar. E eu simplesmente não senti mais nada, foi como se tudo estivesse bem, mas não está. Eu sou como um palito de fósforo, esperando a fagulha ou o atrito que me fará incendiar. Sempre à espera. Sempre há espera.
Eu sou muito saudoso, pra não dizer saudosista. Eu sempre gosto de frequentar os mesmos lugares, pedir as mesmas comidas, escutar as mesmas músicas. É claro, alguns dias eu mudo. Também é bom arriscar. Mas tem alguma coisa muito estranha em mim que me faz querer pertencer. As minhas casas são algumas delas. Pra quem também teve pais separados, é fácil entender que vivemos de galho em galho. No meu caso foram de galho em galhos, porque eu passei boa parte da minha infância entre minha mãe, meu pai/madrasta, minha avó e minha tia. Mas foi na casa da minha avó que eu passei a maior parte da vida. Era uma casa escura, comprida, com vários móveis que contavam história. O quarto da avó, que como toda boa católica, tinha um pequeno altar com Nossa Senhora. A máquina de costura. A cama dela e a minha (sim, eu era colega de quarto da minha avó). Os nossos armários. Logo ao lado, o quarto do meu tio. O armarinho com documentos, fitas antigas, LPs, álbuns de fotos. Toda nossa história. A espingarda na parede. A coleção de banquinhos, eram dois: um para o cinzeiro, outro para esticar as pernas. Os sofás lado à lado na sala. Éramos sempre nós três. A nossa rotina. A do domingo me marcava demais: meu tio e minha avó acordavam cedo, tomavam café e planejavam o almoço. Será que alguém viria? Tinha sempre macarrão. Na manhã eles assistiam "Viola, Minha Viola" o que as vezes me fazia acordar. Meu tio gostava de música alta. No fim da tarde e começo da noite, todos sentávamos no sofá. Assistíamos "Repórter Eco". Tinha alguma coisa de especial na natureza, um fascínio de lugares que provavelmente nunca poderemos conhecer. Vocês eu sei que não puderam.
Eu sempre fui muito tagarela e não sei como vocês me aguentavam. A única coisa relevante que eu disse foi numa noite de sábado, eu estava cansado do comportamento do meu pai e desabafei: "eu gosto mais de vocês dois do que do meu próprio pai". Eu chorei enquanto dizia isso. Vocês não me disseram nada. Mas eu sabia que nesse silêncio tinha o acolhimento que eu precisava. Eu só precisava sentar entre vocês e deixar minha mente vagar como sempre faço, mas sabendo que vocês estavam alí. Mas eu nunca imaginei que algum dia vocês não estariam.
Quando eu perdi minha avó, eu não sabia como lidar. Eu nunca me imaginei sem ela, nem por um segundo. Eu nunca me toquei da efemeridade da vida. Eu estudava tanto. Eu queria amar, eu queria ser amado, eu queria garantir meu futuro, eu queria encontrar o meu trabalho (sou millennial, fui ensinado que minha felicidade estava na minha carreira). Era meu primeiro semestre na faculdade, algo que eu sempre almejei. E ela não estaria comigo pra me ver formar. Pra colher o fruto do tanto que eu pelejei pra chegar em algum lugar. Eu nunca superei meu luto, vó. Eu nunca passei do quarto estágio, eu não fui capaz de vencer sozinho a depressão. E dois anos após viver na nossa casa, eu não fui mais resiliente o suficiente pra continuar num espaço que era nosso. O quarto que antes era nosso, agora era meu. Eu mantive o altar, mas no lugar da sua cama, minha escrivaninha de estudos. Não tinha mais nós alí, era eu. E eu não me suporto.
Depois que viajei pro Rio de Janeiro, eu decidi morar com a minha mãe. Eu queria de alguma forma ressignificar minha existência. Ressignificar os espaços que eu ocupava. Mas eu não conseguia mais voltar pra nossa casa. Eu sabia que tinha alguém alí muito importante pra mim, mas eu não conseguia mais voltar. E foi assim que eu te abandonei, tio. Porque eu sou idiota e eu penso que o tempo cura tudo. Mas nós não temos todo o tempo do mundo. E eu fujo, tio, eu não nasci pra ser corajoso. Nós somos reféns das nossas próprias escolhas e do nosso corpo. Quando eu recebi a notícia que você estava perto do fim, eu não soube o que fazer. Eu te visitei no hospital, você parecia mal. Mas naquela semana eu te visitei três vezes em casa. Eu pensava que você estava bem, eu falei com meu melhor amigo e ele me disse que os planos de Deus são esquisitos. Que era pra dar uma chance. Ele é a pessoa mais esperançosa que eu já conheci. E eu juro que eu tive esperança. Eu não consegui acreditar quando você partiu, uma semana depois. Eu não consigo parar de conjurar na minha mente a imagem de você sofrendo antes de morrer. Eu não consigo parar de pensar que em algum momento você sentiu que eu esqueci de você.
Éramos três. Hoje eu estou sozinho. Eu sentia que precisava voltar pra nossa casa, eu pensava que de alguma forma eu encontraria lá alguma coisa pra me agarrar. Mas a casa também estava morta. Somos nós quem damos vida à casa. E nós não estamos mais lá. Eu sei que ninguém nunca vai ler o que eu escrevo aqui, mas eu peço desculpas. Eu preciso aprender à seguir em frente. Um dia.
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